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Benevides: a pioneira da abolição da escravidão na Amazônia

Neste 20 de novembro de 2024, o Brasil celebra pela primeira vez o Dia da Consciência Negra como feriado nacional. A data, marcada pela reflexão sobre a luta e a resistência da população negra, é também uma oportunidade de revisitar momentos históricos que foram marcos na busca por liberdade e igualdade.

Entre eles, um evento que merece destaque é a importância abolicionista de Benevides, município da Região Metropolinata de Belém que, em 30 de março de 1884, tornou-se a primeira localidade da Amazônia a abolir a escravidão — quatro anos antes da assinatura da Lei Áurea.

BERÇO DA LIBERDADE

O fato, embora marcante para a história não só do Estado, mas da Amazônia e do Brasil, ainda é pouco conhecido dentro e fora do Pará. De acordo com a historiadora Ana Carolina Trindade Cravo, doutoranda em História da UFPA e que pesquisou a história da abolição em Benevides, o movimento foi impulsionado por migrantes cearenses que trouxeram consigo as ideias libertadoras já em prática no Nordeste.

Isso ocorreu quando a localidade ainda se chamava Colônia Agrícola Nossa Senhora do Carmo de Benevides, inicialmente criada para abrigar europeus, na sua maioria franceses, mas que passou a ter uma grande população de nordestinos que entravam no continente para fugir da seca, em especial cearenses. Junto com eles, chega no Pará o movimento abolicionista da Província do Ceará, que determina a abolição da escravidão em 25 de março de 1884.

“Benevides foi a primeira localidade da Amazônia a abolir a escravidão. Na época, ainda era uma colônia agrícola, habitada por cearenses e franceses. A presença dos cearenses é determinante, pois eles tinham essa conexão de ideias, tinham parentes lá, mantinham contato. É através dessa relação que eles resolveram libertar os escravizados”, explica a historiadora,

Ela explica que a abolição em Benevides foi articulada de forma coletiva, com apoio da população de diversas classes sociais e movimentos abolicionistas, em especial a Sociedade Libertadora de Benevides, que funcionava como um braço da organização cearense. “A colônia não tinha autonomia legislativa para determinar isso, fizeram a partir de conversas próprias. Eles tinham contato com associações abolicionistas, e a partir desse movimento, resolveram trazer isso para cá. A abolição em Benevides ocorreu como se fosse um acordo que todo mundo aceitou”, detalha Ana Carolina.

A historiadora Ana Carolina Trindade pesquisou sobre o processo abolicionista no município. |Arquivo pessoal

Embora a data de 30 de março de 1884 tenha se tornado símbolo da libertação, a historiadora esclarece que o processo começou antes e continuou depois: “Neste dia foram libertos seis escravizados, mas foi quando Benevides se tornou uma localidade livre da mancha da escravidão, como eles diziam”.

A liberdade conquistada em Benevides repercutiu rapidamente, atraindo escravizados de outras regiões. “A partir dali o negócio foi tomando uma proporção maior. Eles imaginavam que ia ficar só nisso, mas a abolição chamou a atenção dos escravizados, que fugiam e passaram a se encaminhar para Benevides. A Sociedade Libertadora de Benevides começava também a incentivar escravizados a virem à Benevides para se tornarem livres”, destaca.

O brasão oficial de Benevides apresenta três datas: a de fundação da localidade, a de quando se tornou município e a de abolição da ecravidão. Além disso, tem a frase em latim “Liberta et Labor”, que significa “liberdade e Trabalho”. |Divulgação/Prefeitura de Benevides

Contudo, essa conquista não ocorreu sem resistência. A proximidade de Benevides com Belém gerou tensões com proprietários de escravos, que temiam que seus escravizados fugissem para a colônia. Um episódio emblemático ocorreu em agosto de 1884, quando autoridades tentaram recapturar uma escravizada na região.

“Esse movimento atraiu uma reação negativa das pessoas que eram proprietárias de escravos, por Benevides ser muito perto do centro da cidade. Como podia uma região perto de Belém ser livre da escravidão? Como poderiam suas propriedades fugirem para lá e serem livres? Chegou a ter um conflito em agosto de 1884, quando as autoridades foram lá prender uma escrava e devolver ao proprietário. Os ex-escravizados protegiam ela e disseram que ela iria de volta, não deixaram e ocorreu um conflito. Disso surgiu um processo judicial de investigação, prisão dos envolvidos de várias classes sociais que só terminou depois do fim do império”, relata a historiadora.

Benevides, o “Berço da Liberdade”. Embora a cidade tenha orgulho do fato, a história é pouco conhecida. |Pedro Guerreiro / Ag. Pará

Ana Carolina ressalta que, apesar dos desafios, Benevides inspirou outras localidades. “O processo abolicionista no Pará não foi expandido abertamente, mas as conexões de ideias foram se interiorizando. Na minha pesquisa encontrei notícias em que dava para perceber que pessoas ligadas ao movimento abolicionista orientava escravos a irem para o interior, por Benevides estava muito visada, sempre tendo batidas policiais após o conflito de agosto, então ficou complicado para os escravizados, que deveriam ir para cada vez mais longe. Mas eles tinham outras conexões”, afirma Ana Carolina.

O reconhecimento da importância histórica de Benevides, no entanto, só começou a ser resgatado um século após a Lei Áurea. “O reconhecimento da importância de Benevides é um movimento recente, só ocorrendo 100 anos depois da Lei Áurea. Depois de 1884 o movimento tem citações muito pontuais, só vão reaparecer notícias falando sobre isso em 1988, e algumas vezes ao longo das décadas de 1990 e 2000, quando surge um movimento para tornar patrimônio cultural imaterial do Pará. A partir disso se fortalece uma política de orgulho da cidade, com símbolos incorporados”, conclui a historiadora.

Eu acho muito triste a falta de conhecimento sobre esse fato muito importante da história. Poucos professores passam isso a seus alunos. Não ter uma divulgação ampla dessa história é uma perda para o Estado, para a cultura. Como fato, ele é muito importante, foi a pioneira da Amazônia

Ana Carolina Trindade Cravo, historiadora.

O APAGAMENTO DA HISTÓRIA NEGRA

Embora Benevides seja hoje reconhecida como a Terra da Liberdade, a memória desse marco histórico ainda é insuficientemente difundida, mesmo entre os moradores da cidade. Edenilza Borges, coordenadora administrativa estadual do Mocambo – Movimento Afrodescendente do Pará, aponta a falta de conhecimento da população local como reflexo do apagamento sistemático da história negra no Brasil.

Edenilza Borges. coordenadora administrativa do Mocambo, defende o conhecimento como forma de combater o racismo. |Arquivo pessoal

“A própria população de Benevides não conhece como se deu esse processo, não é trabalhado em sala de aula. Nós trabalhamos com rodas de conversa, fizemos uma no último dia 16, e muitos que estavam lá não sabiam como se deu isso. Pode-se falar sobre o ‘berço da Liberdade”, mas não se consegue trabalhar a fundo”, afirma.

“Nós, enquanto Mocambo, trabalhamos com formações, porque diminuir o racismo latente é falar abertamente sobre ele. Dizer ‘todos somos iguais’ é um discurso vazio, não contempla a população negra. É um sistema escravocata, em que a população não ocupa os mesmos espaços”, continua Edenilza.

A população negra continua nas periferias, é maioria no sistema carcerário, tem o maior índice de analfabetismo. No dia 20 iremos comemorar o primeiro Dia da Consciência Negra como feriado, mas a população não sabe porque vai ficar em casa, porque ganhou uma folga. Se não é o movimento social que vai para as ruas, que milita, nada é feito

Edenilza Borges, coordenadora administrativa estadual do Mocambo.

Esse cenário reflete um problema maior no país. Desde 2003, o ensino de história afro-brasileira é obrigatório em todas as escolas do país, tanto da rede pública quanto privada, mas Edenilza critica sua implementação.

“Mesmo com a lei, o que vemos é isso ser trabalhado enquanto projeto, como atividades, não estando de fato no currículo escolar. A gente precisa sensibilizar sobre a importância de desconstruir o racismo. A gente não consegue ouvir falar sobre a história negra antes da escravidão, não aprendemos sobre os reis e rainhas negras, não se fala de África. É preciso este trabalho. Enquanto isso, a população negra continua sofrendo com o racismo estrutural e recreativo”, analisa a coodenadora.

O Mocambo realiza ações e atividades para promover o debate contra o racismo. |Mocambo

Edenilza ainda destaca a importância do movimento social para manter viva a memória e combater o racismo. “O conhecimento é uma arma contra o racismo. Aquela fala de não ser racista é ultrapassada, é preciso ser antiracista. Mas se só vemos a população negra em datas específicas, como 20 de novembro ou 13 de maio (data da assinatura da Lei Áurea), a gente não consegue assimilar o que é racismo”, alerta.

Sobre Benevides, Edenilza lamenta que o marco histórico seja tão pouco conhecido. ““Em Benevides é um pouco mais complicado, porque a gente tem no município uma referência, tudo começou por ali. Eles aboliram a escravidão, o evento contou com a participação do presidente da Província do Grão-Pará, o Viscende de Maracaju, mas se perguntar para qualquer morador de Benevides, ninguém sabe falar como se deu o processo e o que significa para nós enquanto população negra. Para a gente isso é muito importante”.

|Fotos: Pedro Guerreiro/Agência Pará

DOL

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