O uso do FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço) Digital para impulsionar o crédito consignado para trabalhadores do setor privado pode reduzir taxas de juros da modalidade e ampliar o público atendido, mas depende de acertos técnicos sobre as garantias que os bancos terão em caso de demissão ou interrupção dos pagamentos.
O ministro Luiz Marinho (Trabalho) disse à Folha que o governo analisa a viabilidade de destinar não só parte da rescisão, mas também uma parcela do saldo do FGTS para honrar os pagamentos.
“Tem lá uma parcela da rescisão que pode ser utilizada. O que estamos estudando, que os bancos desejam, é o seguinte: tão somente neste caso, na hora da rescisão, se utiliza ou não utiliza o FGTS. Estamos analisando o que é aceitável do ponto de vista do trabalhador”, afirmou.
O ministro critica propostas de bloquear no FGTS um valor equivalente a 100% do saldo devedor do contrato, mas deixou a porta aberta para outras opções. Uma nova reunião sobre o tema deve ocorrer nos próximos dias, com participação dos ministérios do Trabalho e da Fazenda e de instituições financeiras.
Desde 2016, a lei permite o uso de 10% do saldo da conta vinculada e 100% do valor da multa a ser paga pelo empregador como garantia para empréstimos consignados, mas a medida nunca foi colocada em prática por ausência de fluxo operacional entre empresas, bancos e a Caixa –agente operador do fundo de garantia.
A avaliação no governo é de que a criação do FGTS Digital, integrado à plataforma eSocial, vai facilitar a criação desses fluxos.
O consignado é hoje a segunda principal linha de crédito às famílias, atrás apenas do crédito imobiliário, mas os trabalhadores do setor privado concentram só 6,5% de uma carteira total de R$ 634 bilhões, segundo dados do Banco Central relativos a janeiro de 2024.
Tanto o estoque já contratado quanto as novas concessões da modalidade são lideradas por servidores públicos e por beneficiários do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social), que têm em comum uma fonte pagadora estatal e maior estabilidade de renda. A situação é diferente da dos empregados do setor privado, que estão sujeitos a alguma instabilidade diante do risco de demissão.
O quadro também se traduz nas taxas de juros. Enquanto servidores e aposentados pagam entre 1,75% e 1,77% ao mês, os encargos cobrados dos trabalhadores do setor privado vão a 2,75% ao ano (dados de janeiro de 2024).
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O diagnóstico do governo e também dos bancos é de que, além do problema das garantias, a porta de entrada para o consignado no setor privado ainda é deficiente.
O acesso à modalidade depende de convênios firmados diretamente pelas empresas com os bancos. Na prática, apenas grandes e médias companhias têm escala suficiente para justificar os custos operacionais de oferecer o serviço.
Há, no entanto, uma massa de trabalhadores atuando em micro e pequenas empresas que não têm nem sequer a possibilidade de contratar esse tipo de empréstimo mais barato. Segundo a Rais (Relação Anual de Informações Sociais) de 2022, quase metade dos 52,3 milhões de trabalhadores atuavam em estabelecimentos com até 99 empregados.
O uso do FGTS Digital vai derrubar a barreira dos convênios. A parcela será descontada pelo empregador e lançada junto com as demais obrigações recolhidas via eSocial. O valor será depois repassado às instituições financeiras.
Hoje, as empresas que conseguem firmar convênios o fazem com apenas um ou poucos bancos. A migração do modelo para uma plataforma deve não só inserir mais trabalhadores nesse mercado, mas também ampliar o cardápio de ofertas de financiamento.
Na avaliação do governo, a maior competição entre os bancos tende a reduzir as taxas da modalidade, enquanto a expansão do público apto a contratar esse tipo de empréstimo deve impulsionar as concessões.
“As domésticas não têm acesso [a crédito consignado], passariam a ter. Todo mundo que está vinculado à ferramenta eSocial passa a ter a possibilidade de acessar, independentemente de o empregador gostar ou não gostar. E gerará também uma competição [entre os bancos]”, disse Marinho.
O governo ainda não divulgou estimativas oficiais de impacto nas concessões ou nas taxas de juros, mas um integrante da equipe econômica afirma, sob reserva, que o efeito pode ser “gigante”. Por outro lado, ressalta que a implementação das mudanças não se dará do dia para a noite e demandará investimentos em tecnologia.
Há uma avaliação de que, a depender do nível de segurança do novo sistema para os bancos, a versão turbo do consignado privado pode ganhar uma escala até maior do que a antecipação do saque-aniversário do FGTS, hoje a principal fonte de crédito barato para as famílias e que contempla até negativados.
Por isso, a medida pode ser uma alternativa para não secar a fonte de crédito às famílias com o eventual fim do saque-aniversário e da antecipação desses recursos, almejado pelo governo a despeito da contrariedade dos bancos.
Entre 2020 e janeiro de 2024, o saque-aniversário e a antecipação de parcelas a serem resgatadas no futuro injetaram R$ 98 bilhões na economia. A antecipação tem taxa de juros média de 1,79% ao mês, menor que a do consignado privado.
Só no ano passado, foram liberados R$ 38,12 bilhões –mais que o dobro dos R$ 18,3 bilhões concedidos via crédito consignado privado. Por isso, os bancos são contra o fim da modalidade.
No entanto, a extinção do saque-aniversário do FGTS é uma bandeira do governo. Marinho já disse em várias ocasiões que trabalhadores que optam pelo saque anual acabam ficando desassistidos quando são demitidos, uma vez que o saldo da conta fica retido no fundo.
Apesar da impossibilidade de um acordo sobre este ponto, há nos bastidores sugestões de um meio-termo. O governo cogita uma transição entre os dois modelos, que poderia durar cerca de dois anos.
As instituições financeiras, por sua vez, têm a preocupação de que a descontinuidade do saque-aniversário e da antecipação das parcelas futuras só ocorra após evidências de que o novo consignado privado está ganhando tração na economia. Do contrário, haveria risco de contração do crédito às famílias e, consequentemente, impacto sobre a atividade econômica.
OS NÚMEROS DO EMPRÉSTIMO CONSIGNADO
SALDO DA CARTEIRA (JAN/24)
Total – R$ 634 bilhões
Servidores públicos – R$ 347,5 bilhões (54,8%)
Aposentados e pensionistas INSS – R$ 245,2 bilhões (38,7%)
Trabalhadores do setor privado – R$ 41,3 bilhões (6,5%)
NOVAS CONCESSÕES EM 2023
Total – R$ 191,8 bilhões
Servidores públicos – R$ 94,7 bilhões (49,4%)
Aposentados e pensionistas INSS – R$ 78,8 bilhões (41,1%)
Trabalhadores do setor privado – R$ 18,3 bilhões (9,5%)
INJEÇÃO DE RECURSOS DO SAQUE-ANIVERSÁRIO
Inclui saque e antecipação de parcelas futuras
2020 – R$ 9,84 bilhões
2021 – R$ 18,09 bilhões
2022 – R$ 28,38 bilhões
2023 – R$ 38,13 bilhões
2024 (*) – R$ 3,56 bilhões
(*) Somente em janeiro de 2024
Fontes: Banco Central e Caixa Econômica Federal
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