Ferrogrão é ‘sentenciada’ pelo povo indígena durante ‘Tribunal Popular’ realizado em Santarém

Representantes dos povos indígenas, comunidades tradicionais, organizações e movimentos sociais do Pará e Mato Grosso promoveram nesta segunda-feira (4), um “Tribunal Popular” para julgar a Ferrogrão (EF-170), seus impactos e as empresas cúmplices e financiadoras do empreendimento. Durante a programação, realizada na Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), em Santarém, no oeste paraense, a “acusação do júri” apontou uma série de violação de direitos e sentenciou a extinção imediata do projeto.

“Desde o início do processo da Ferrogrão, só foram realizadas audiências nas cidades, nenhuma dentro das aldeias indígenas. Sendo que os povos Munduruku, Kayapó e Panara têm os protocolos de consulta que precisam ser respeitados, eles são nossa arma de defesa. Por isso, estamos nos unindo em uma aliança contra esta ferrovia”, disse Alessandra Korap Munduruku, que esteve ao lado de caciques e representantes dos Munduruku, e dos povos Kayapó, Panará, Apiaká, Arapiuns, Tupinambá e Xavante.

O Tribunal foi composto ainda por organizações e comunidades indígenas, representantes de comunidades de pescadores, agricultores familiares e movimentos sociais.

A sentença traz cinco argumentos de acusação: violação do direito à consulta livre, prévia, informada e de boa-fé; estudos falhos e subdimensionamento dos impactos e riscos socioambientais conexos; aumento da especulação fundiária, grilagem de terras públicas, desmatamento, queimadas e conflitos fundiários; e favorecimento indevido dos interesses das empresas transnacionais Cargill, Bunge, Louis Dreyfus e Amaggi.

Desde a idealização da ferrovia, o direito à consulta livre, prévia, informada e de boa-fé – garantido pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e internalizada à legislação brasileira – foi desrespeitado pelo Governo Federal.

“Os estudos técnicos apresentados por aqueles que defendem o projeto dizem que a ferrovia passará longe dos territórios, mas para nós, que vivemos dentro deles, está perto e nunca fomos consultados. Realizaram audiências nas cidades e jamais pisaram em nossas aldeias, como determina o nosso protocolo de consulta. Por isso, exigimos respeito ao nosso direito de ser consultado antes de colocar empreendimento perto ou dentro do nosso território”, defendeu a liderança da Terra Indígena Baú, no Pará, Mydjere Kayapó Mekrãgnotire.

“Este réu representa não só a Ferrogrão, mas outros empreendimentos que estão sendo pensados sem nenhuma consulta aos povos afetados. Os protocolos de consulta dos povos devem ser respeitados como foram pensados nos territórios e a ausência do instrumento do protocolo não é impedimento para a consulta de um povo afetado pelo empreendimento”, reforçou Kleber Karipuna, Coordenador Executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e representante da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB).

Além das comunidades indígenas que seriam impactadas pelo empreendimento, o Tribunal foi também espaço para manifestação e fala de representantes de comunidades tradicionais da região. Francisca Barroso, coordenadora da Rede Agroecológica de Trairão (PA), tratou dos efeitos do projeto nas comunidades de agricultores que vivem no entorno da rodovia BR-163, que corre o risco de virar uma ferrovia.

“Essa luta não é apenas dos povos indígenas, mas de todos nós que vivemos da terra e precisamos ter os nossos direitos territoriais respeitados. Nós, agricultores, estamos avisando que a agricultura familiar que alimenta esse país – afinal, as famílias brasileiras não comem soja – vai ser prejudicada com a construção desta ferrovia. Vai ser impossível produzir nessas terras que já estão ameaçadas pela grilagem e uso de agrotóxicos”, destacou Francisca.

O Programa Nacional de Logística (PNL 2035) do Ministério da Infraestrutura não tem nenhum cenário futuro sem a Ferrogrão, que demonstra a forte influência do lobby do agronegócio e das empresas internacionais – e existem outras alternativas possíveis para o escoamento de grãos que poderiam ser consideradas. “A Ferrogrão não considera o potencial de desenvolvimento da floresta. E ignora a economia local proveniente da agricultura familiar, ribeirinhos e demais comunidades amazônicas. É um projeto na Amazônia e não para a Amazônia”, explicou João Andrade, representante do GT

Protesto em frente à Cargil

Protesto em frente à Cargill — Foto: Divulgação

No mesmo dia do Tribunal, manifestantes realizaram um ato contra a Ferrogrão no Porto de Santarém, chamando a atenção para os impactos da ferrovia e para sua relação com a Cargill, uma das empresas internacionais interessadas na implementação da ferrovia, e uma das responsáveis por seu financiamento.

“Os 1.000 mil km da ferrovia que passaria pelo coração da Amazônia foram propostos pelas empresas transnacionais Cargill, Bunge, Louis Dreyfus e Amaggi para o Governo Federal do Brasil. Caso seja construída, o Governo vai entregar os recursos deste país para a China e Europa. O lucro não será para as pessoas do Brasil. A Ferrogrão será construída no Brasil, será financiada pelo Brasil, irá destruir as florestas e os territórios do Brasil, mas apenas um pequeno lucro irá ficar no Brasil. O resto será exportado, assim como a soja e o milho”, denunciou Mathew Jacobson, diretor de campanha da Stand.Earth.

Para Pedro Charbel, assessor de campanhas da Amazon Watch, o tribunal representa a força e determinação dos povos indígenas, comunidades tradicionais e movimentos sociais em defender seus direitos e o futuro do planeta. “O governo brasileiro deveria se atentar à sentença do Tribunal e cancelar imediatamente o projeto da Ferrogrão, caso contrário estará optando por aprofundar a destruição da Amazônia, do Cerrado e dos direitos dos habitantes desta região”, finalizou.

Sentença do júri

Ao final de seis horas de “Tribunal”, os povos indígenas e tradicionais sentenciaram: “Considerando os graves vícios no planejamento, as violações dos direitos da natureza e dos povos e comunidades tradicionais da região, bem como a necessidade de resguardar os biomas brasileiros e o futuro do planeta dos interesses de empresas transnacionais multibilionárias, este Tribunal Popular determina o cancelamento imediato e definitivo do projeto da Ferrogrão por parte do Governo Federal e a devida responsabilização da ADM, Bunge, Cargill, Amaggi e Louis Dreyfus pelos danos incorridos contra a natureza e os habitantes da região do Tapajós e do Xingu”, traz o documento da sentença final.

Tribunal popular julgou a Ferrogrão em evento realizado na Ufopa, em Santarém — Foto: Raissa Azeredo

Além disso, o Tribunal também determinou que o Governo Federal promova mudanças estruturantes nos instrumentos e processos de tomada de decisão no planejamento de infraestrutura, fortaleça a governança territorial, e promova uma nova visão sobre a infraestrutura para a Amazônia, reiterando a necessidade de consulta livre, prévia e informada aos povos originários e tradicionais para todo e qualquer empreendimento que afete direta e indiretamente povos indígenas e comunidades tradicionais. A sentença foi assinada por 40 organizações de povos indígenas, tradicionais e movimentos sociais.

Violação do Direito à Consulta

O tribunal destacou que, desde o início do processo de idealização da Ferrogrão, as comunidades indígenas e tradicionais afetadas pelo projeto jamais foram consultadas. As testemunhas alegaram ainda que o Governo Federal, desde o governo Temer, tem realizado apenas audiências em cidades que só beneficiam os apoiadores da ferrovia e desrespeitam os protocolos de consulta dos povos.

A acusação destacou que a consulta prévia, livre e informada é uma obrigação do Estado brasileiro, visto que é signatário da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho, que foi incorporada ao ordenamento interno pelo Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004. Este dispositivo determina que a consulta deve se dar nos moldes políticos dos povos e comunidades tradicionais, as quais têm o direito de consentir com ou a vetar a proposta apresentada e seu posicionamento deve ser respeitado pelo Estado e pelos empreendedores.

Estudos falhos não dão dimensão dos impactos socioambientais

O tribunal também pontuou que os estudos que tentam viabilizar a Ferrogrão são, na verdade, falhos por não considerar devidamente os impactos sobre populações locais, inclusive povos indígenas em isolamento voluntário. Além disso, os estudos também ignoram a relação da ferrovia com a expansão da fronteira agrícola e da mineração na região, e não avaliam os efeitos sinérgicos e cumulativos de diversos projetos no mesmo território, a exemplo da BR-163, a estação de transbordo em Matupá, terminais portuários, hidrovias e hidrelétricas existentes e planejadas na bacia do Tapajós.

Violação dos Direitos da Natureza

Além dos direitos originários, o projeto da ferrovia também viola os direitos da natureza, principalmente nos biomas Amazônia e Cerrado. Inúmeros estudos demonstram que a Ferrogrão irá aumentar o desmatamento, por conta da desflorestação necessária para a construção da ferrovia e, também, pelo favorecimento da expansão da produção de commodities agrícolas na região. Além disso, com a Ferrogrão, as emissões de carbono serão intensificadas em 75 milhões de toneladas ao contribuir diretamente para o desmatamento de mais de 2 mil km² de floresta nativa.

Conflitos de Terra, Desmatamento e Queimadas

Apesar do projeto estar apenas no papel, os impactos já são sentidos na região. Os moradores das áreas próximas à região da BR-163, onde está prevista a ferrovia, afirmam que o anúncio da Ferrogrão, com sua inclusão no Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) em 2016 e no Plano Nacional de Logística (PNL) em 2020 tem contribuído para o aumento da especulação fundiária, grilagem de terras públicas, desmatamento, queimadas e conflitos fundiários, além de prejudicar a governança territorial da região do Corredor Tapajós-Xingu.

Sobre a organização do Tribunal

O “Tribunal Popular da Ferrogrão” foi organizado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Associação Pariri, Instituto Kabu, Movimento Tapajós Vivo, Comissão Pastoral da Terra, GT Infra, Amazon Watch, Inesc, Fase e Stand Earth. A atividade visa influenciar uma decisão pendente do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o mega-projeto, patrocinado pelas grandes traders do agronegócio, como Cargill, Bunge e Dreyfus.

Sobre a Ferrogrão

O referido projeto foi idealizado por um grupo de tradings do agronegócio em 2014, quando o processo de pavimentação da BR-163 já estava em fase avançada. O projeto ganhou tração com Michel Temer e se tornou prioridade no governo de Jair Bolsonaro, estando sob análise do Tribunal de Contas da União (TCU) desde 2020.

Trata-se de um projeto de 933 km de ferrovia que seguiria o percurso da BR-163 e de parte da Transamazônica, ligando Sinop, no norte de Mato Grosso e o distrito de Miritituba, na margem direita do rio Tapajós, no Estado do Pará. O objetivo primordial é baratear o escoamento da produção agrícola na região, visando ampliar a produção e exportação de soja e milho no âmbito do Corredor Logístico Norte – cujos portos, hidrovias, e rodovias já acumulam passivos e graves violações aos direitos humanos e direitos da natureza.

Para viabilizar a obra, uma Medida Provisória editada por Temer pretendeu excluir cerca de 862 hectares do Parque Nacional do Jamanxim, uma grande e importante área de preservação ambiental onde povos indígenas da região desenvolvem seus modos de vida e possuem vínculos ancestrais. Esta medida ensejou a Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.553 no Supremo Tribunal Federal, a qual resultou, em 2021, em uma liminar que suspendeu o desenvolvimento do projeto.

Em maio de 2023, no entanto, o Ministro Alexandre de Moraes autorizou a retomada dos estudos sobre a Ferrogrão e recomendou um processo de conciliação, propiciando um ambiente mais favorável ao projeto. Setores do governo Lula defendem a Ferrogrão, e recursos para seus estudos foram assegurados pelo novo Programa de Aceleramento do Crescimento (PAC), publicado em agosto de 2023.

No mesmo mês, o presidente da Cargill no Brasil, Paulo Souza, declarou que “Não dá para ser contra o Ferrogrão. É uma irresponsabilidade”.

Fonte: G1 Santarém

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