Movidos por um grande sentimento de indignação pelas condições em que viviam, os cabanos tomaram a cidade de Belém no dia 07 de janeiro de 1835, dando início àquela que é considerada a revolta popular mais duradoura do Império brasileiro, a Cabanagem. Enquanto as tropas da então Província do Grão-Pará esperavam alguma investida de revoltosos pelos portos de Belém, foi por áreas pouco movimentadas da cidade que os cabanos se insurgiram para tomar o poder. Apesar de ter sido duramente reprimida, passados 189 anos, a revolta até hoje deixa marcas no cenário atual da cidade.
A Belém tomada pelos cabanos há mais de um século é bem diferente do que se observa hoje e, segundo aponta a professora da Faculdade de História da Universidade Federal do Pará (UFPA), Magda Ricci, essas características influenciaram a forma como a cidade foi tomada pelos revoltosos, formados também por negros e indígenas que conheciam muito bem a configuração da cidade.
“A Belém da Cabanagem já tinha sido bastante aportuguesada, mas até o início dos anos 30 era uma Belém que tinha uma característica ainda da época inicial bastante evidente, que era a quantidade de canais e igarapés que cortavam a cidade. Era como se fosse uma península cheia de pequenas ilhas”, aponta a historiadora. “Basicamente, entrar e sair de Belém só era possível com pequenas montarias, com embarcações pequenas, todas elas movidas a remo e com a mão de obra, em geral, negra ou indígena”.
A professora explica que até antes da Cabanagem, Belém era uma cidade movida por essa ‘gente das águas’, que andava de um lado para o outro da cidade em canoas. Naquele período, o território ainda era marcado pela presença de um grande pântano, o Pântano do Piri. “Toda aquela parte da cidade que hoje é o Guamá e o Jurunas foi muito alagada e só existia ali um caminho para chegar até São José e duas pontes que juntavam a Cidade Velha com o que seria ali a região de Santo Antônio. Boa parte da cidade ficava entre o Arsenal, Campinas e Cidade Velha, ali que era o centro de tudo e para você passar para o outro lado, que era onde as embarcações atracavam no Ver-o-Peso e onde tinha um pelourinho também em frente aos Mercedários, era muito difícil”.
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Diante deste cenário, as carruagens que circulavam por Belém, à época, só conseguiam se deslocar na área que hoje é o bairro da Cidade Velha e em parte do bairro da Campina, porém, havia os indígenas e as canoas que levavam as pessoas para muitos outros lugares. Dessa forma, naquela época, Belém era muito ocupada por essas pessoas que detinham os saberes de como transitar pelos rios, pelos canais, pelos igarapés.
“Os Cabanos entram na cidade pelos igarapés, com as suas montarias. Hoje, não seria possível essa entrada, então, a gente tem toda uma diferença do que era essa cidade cabana, que ainda era uma cidade indígena, que era a cidade das canoas e que, depois do fim da Cabanagem, com todos esses aterramentos, não é mais”, aponta. “Estudar a Cabanagem não deixa de ser um estudo sobre todos esses aspectos, sobre o que era a cidade”.
A forma de atuação dos revoltosos nesse processo de tomada de Belém fala, para além da configuração da cidade, sobre quem eram essas pessoas que integraram o movimento cabano. Ainda que durante algum tempo tenha se pensado que os revoltosos eram, em sua maioria, mestiços, hoje se sabe que eles eram também negros libertos, negros escravizados, indígenas de diferentes etnias e, inseridas nessa diversidade, também mulheres.
A historiadora e professora do Mestrado em Ensino de História da UFPA/Campus de Ananindeua, Eliana Ramos, acompanhou os passos das mulheres na Cabanagem durante as suas pesquisas para elaboração de uma dissertação e de uma tese sobre o assunto. E o que ela verificou é que a participação feminina esteve, sim, presente durante a revolução cabana.
“Encontrei algumas mulheres guerreiras, muitas mulheres que se posicionaram politicamente. Primeiramente, na dissertação quis ver as mulheres que deram apoio às lutas cabanas e eu encontrei diversas formas de participação das mulheres, inclusive pegando em armas”, revela. “Elas deram apoio, por exemplo, escondendo armas, escondendo cabanos. Na luta armada mesmo, nos embates, era um campo eminentemente masculino no século XIX, mas as mulheres estavam presentes. Eu encontrei documentações que diziam ‘prendemos 9 cabanos, 30 mulheres, tantas crianças e 20 armas’. Então, na soma fica muito claro que as mulheres também pegaram em armas”.
Entre as mulheres que encontrou no percurso da pesquisa, Eliana destaca a atuação de Dona Bárbara, uma mulher possivelmente branca, viúva de um militar e que toma para si a missão de soltar um dos líderes cabanos, o Francisco Vinagre, que estava preso, naquele momento, na fragata Campista; a atuação da escravizada Maria Lira, que após ser presa em Santarém é separada dos demais presos porque, diante da suspeita de que se tratava de uma mulher escravizada, deveria ser devolvida ao seu senhor; e ainda de uma cabana ferida que fica anônima porque na documentação histórica que registra a sua captura não informam o seu nome. “Elas estão em campos densos de disputa que simbolizam bem o que foi a Cabanagem”.
A historiadora e professora da Escola de Aplicação da Universidade Federal do Pará (UFPA), Danielle Moura, destaca ainda que a própria forma como os participantes da Cabanagem foram retratados nas documentações oficiais e, durante muito tempo, pela própria historiografia é também parte do intenso processo de repressão sofrido pelo movimento.
Durante o processo de pesquisa para a sua dissertação de mestrado, ela buscou entender outra forma de repressão à revolta, esta através do discurso, da construção da memória sobre os cabanos. “Era uma preocupação de uma elite provincial anticabana e era uma preocupação do Império criar uma imagem bastante negativa e muito detratora dos cabanos e aí desumanizar, colocar como monstros, colocar como ferozes, como próximos à natureza no sentido primitivo, colocar como sanguinários, incivilizados e bárbaros”, pontua. “E o que pesava na construção dessa imagem negativa é o fato dessa população ser majoritariamente negra, indígena, mestiça”.
A professora explica que, na perspectiva do século XIX, essas pessoas eram consideradas incivilizadas e inferiores aos brancos que, acreditava-se serem os civilizados, que tinham trabalho, família, propriedade e os que conheciam as leis e, portanto, seriam capazes de entender e governar o mundo.
“Os cabanos eram exatamente o oposto desse ideal de cidadão, de brasileiro e de ordem social e política da época. Então, o combate da Cabanagem também foi, para além de todas as batalhas e de toda essa guerra, o de construir uma imagem extremamente negativa dos cabanos. Isso aparece nas correspondências entre as autoridades, entre os militares e isso tomou o Brasil e chegou até a Corte através dos jornais. Há pesquisadores que demonstram como essas várias formas de detratar os cabanos, de colocá-los como incivilizados, os vários termos utilizados aparecem nos jornais que chegam ao Rio de Janeiro e que influenciam a resposta bastante forte que a Corte vai dar à Cabanagem”.
Diante do perigo que a Cabanagem representava ao questionar as estruturas opressoras vigentes durante o Império brasileiro e diante do cenário construído também a partir dessas narrativas, a revolta popular foi duramente reprimida. Depois de tomarem a cidade de Belém e de assassinarem o então Governador da Província do Grão-Pará, Bernardo Lobo de Sousa, e o Comandante de Armas da Província do Pará, o coronel Joaquim Silva Santiago, os cabanos são derrotados e expulsos da cidade no dia 13 de maio. Eles ainda voltaram a ocupar Belém no dia 14 de agosto, em uma incursão que foi ainda mais violenta do que a primeira, e a Cabanagem se estendeu até 1840, quando foi reprimida em definitivo.
Mesmo passado vários anos desde o ocorrido, as documentações históricas preservadas, sobretudo, no Arquivo Público do Estado do Pará possibilitaram que inúmeros trabalhos produzidos pela historiografia, aos poucos, fosse modificando a visão acerca da Cabanagem, sobretudo em Belém, e hoje a cidade ainda guarda muitas referências em homenagem ao movimento popular que também fala sobre o próprio processo de construção da identidade do povo paraense.
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