Para preservar a identidade da vítima, mudamos o nome dela e vamos chama-lá de Sara*. Em relato ao UOL, a jovem diz relembrar o estupro que sofreu sempre que lê ou ouve o relato de uma mulher que também foi vítima de violência sexual. “Estou tentando ficar bem. Mas não consigo mais me aproximar das pessoas, ter contato físico, abraço. Não consigo me olhar no espelho como me olhava antes”, contou.
Na madrugada de 14 de agosto, ela decidiu ir a um batalhão da Polícia Militar em São Félix do Xingu, para tentar registrar uma denúncia. Lá a vítima foi informada que o melhor era procurar a Polícia Civil na manhã seguinte. No outro dia foi à delegacia e, acompanhada de uma amiga, contou o que aconteceu.
Sara* disse que foi a uma festa de aniversário onde tinha cerca de cem pessoas no dia 13 de agosto e, por volta das 2h, decidiu ir embora. Um amigo, vendo-a embriagada, se prontificou a levá-la para casa. Na saída, ele percebeu que deixou as chaves na casa onde acontecia a festa, voltou para buscá-las e, ao retornar, Sara havia sumido.
Ela foi levada por três homens, que, de acordo com o seu depoimento à polícia, a forçaram a entrar em um carro. No banco de trás, um deles a obrigou a cheirar cocaína, segurando sua cabeça e inserindo o pó branco com uma chave no nariz dela. Os três levaram Sara* até uma casa e se “revezaram”, segundo ela, na prática de abusos sexuais, além de a obrigarem a fazer sexo oral neles. A vítima foi deixada na porta de uma casa, e afirma não saber dizer onde fica, no entanto ela voltou caminhando ao local da festa, uma hora e meia depois de ter desaparecido. À polícia amigas da vítima contaram que quando ela voltou à festa, estava com a roupa suja de sangue, chorando e dizendo que foi estuprada. Ela não conhecia os homens, que também participavam da festa.
“Fui para a delegacia diretamente, mas pediram para eu retornar durante o dia. Depois, fui para casa e fiquei com medo do que poderia acontecer. Esse para mim foi o pior momento. Me sentia culpada”, disse a vítima ao UOL.
As informações fazem parte do inquérito policial, que constam sete depoimentos: da vítima, de quatro testemunhas que confirmaram que Sara* sumiu da festa embriagada e voltou depois, muito nervosa, e dos três acusados do crime, que também confirmaram que ela estava “completamente bêbada”, como diz um deles em depoimento.
Os três afirmam que ela entrou no carro sem ser convidada e negaram as acusações de estupro. Dois deles disseram que não tiveram relações sexuais com ela e nem presenciaram atos sexuais ou abusos. O terceiro afirmou que não forçou ninguém a ter uma relação sexual com ele. Na conclusão do inquérito, entendeu-se que houve estupro de vulnerável na forma coletiva. O advogado dos réus, Dyego de Oliveira Rocha, afirma que “há várias contradições” no processo, mas que não pode especificá-las pois o caso é sigiloso. Diz ainda que seus clientes são inocentes, que a defesa vai trabalhar para provar isso e que confia na Justiça para que os três sejam absolvidos.
O UOL teve acesso ao inquérito e ao processo. Os nomes dos envolvidos não podem ser divulgados porque o processo corre em segredo de Justiça. O Ministério Público do Pará ofereceu a denúncia no dia 31 de agosto, que já foi aceita, tornando os suspeitos réus no processo. A reportagem entrou em contato com o MP-PA, mas a entidade afirmou que não pode se pronunciar sobre o caso. Foram expedidos mandados de prisão contra os três réus, no entanto, apenas um deles está preso. Segundo o advogado da defesa, os mandados dos outros dois ainda não foram cumpridos. Ele não sabe dizer por que ambos não foram presos.
Em dezembro está marcada uma audiência para coletar depoimentos das pessoas envolvidas com a denúncia e das testemunhas.
Em setembro, a Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil do Pará (OAB-PA) divulgou uma nota pedindo uma investigação minuciosa do caso e alertando que “os violadores não têm medido esforços para ‘abafar o caso’, oferecendo dinheiro e perpetrando ameaças de morte explícitas contra a vítima e sua família, caso prossiga com a denúncia […] a ponto de a vítima ter de sair da cidade, com medo de morrer”. Uma fonte da OAB-PA ouvida pela reportagem confirmou que a entidade se mobilizou em torno do caso para proteger a vítima.
“Eu não estupraria uma puta feia como você”
Ainda na noite da festa, ao reencontrar os amigos e contar o que tinha acontecido, Sara viu seus agressores no local e os acusou publicamente. “Vocês me estupraram”, disse. Um deles, segundo duas testemunhas, respondeu: “Eu não estupraria uma puta feia como você”. As amigas de Sara* a levaram embora. Uma delas a levou para sua casa e deu banho na jovem, quando percebeu uma marca de mordida nas costas.
Antes de formalizar a denúncia, a vítima abriu a loja de roupas em que trabalhava, ligou para a chefe e contou o que tinha acontecido, chorando muito. Sara* tinha o sonho de estudar Odontologia e se tornar dentista.
A peregrinação começou com a denúncia. Primeiro, porque a cidade de São Félix do Xingu não conta com um departamento de perícia especializado. Susana teve de viajar 600 km para fazer dois exames periciais em outra cidade, como explica o advogado dela, Delson Júnior, que aponta problemas no procedimento.
“Os exames foram feitos, existem protocolos de sua realização. Contudo, os resultados desapareceram. Fomos informados de que, em no máximo 15 dias, teríamos os resultados em mãos, e já se passaram quase três meses. Estamos entrando em contato presencialmente, quase que diariamente com uma unidade regional de perícia, para obter respostas, mas continuamos sem razões plausíveis que possam justificar a demora na emissão do resultado dos exames periciais”, explica.
Além disso, Sara* decidiu mudar de cidade após sofrer perseguições. Contou com a ajuda de familiares e amigos. “No processo em questão, ela, que também foi drogada, por, supostamente, três homens adultos, capazes e filhos de pessoas com alto poder aquisitivo e influência política na cidade de São Félix do Xingu, teve a sua vida arruinada socialmente”, diz o advogado.
“Foi ridicularizada nas mídias sociais e houve urgência em fugir da cidade, com receio de que ela sofresse algum mal”. Diversos perfis em redes sociais passaram a publicar fotos da jovem com ofensas e ataques. Um abaixo-assinado chegou a ser criado para que o suspeito que estava preso fosse solto.
“O valor da dignidade não está sendo aplicado à vida de uma pessoa negra, pobre e que reside no interior do estado do Pará”, diz Delson.
Advogado faz apelo para que vítima seja respeitada: “Ela teve a vida arruinada”
O advogado afirmou que o apoio que a vítima teve em São Félix do Xingu foi mínimo e que houve entraves no processo para a apuração do ocorrido, como os resultados dos exames que nunca chegaram. Ele alerta ainda sobre o risco que ela corre por ter denunciado homens de famílias influentes na política na cidade. Além disso, diz, Sara* teve “a vida arruinada social, econômica e psicologicamente”, pois teria sido difamada na cidade e precisou largar o emprego ao mudar de cidade.
Ele pede ajuda a “instituições que possuem em seus regulamentos e estatutos o dever de proteger vítimas de violência contra mulheres, negras e pobres”, como é o caso de Sara*, e disponibiliza seu site para contato. “Os advogados dos autores colocaram a palavra da vítima em xeque. Na atuação da defesa, ela foi tachada como mentirosa em toda a cidade, e um processo que deveria correr em segredo de Justiça, como determina a lei, foi divulgado amplamente.”
Sara*, acuada e traumatizada pelo que passou, prefere falar pouco sobre o caso. Diz estar feliz com o apoio o que recebeu de outras vítimas. “Muitas meninas me mandaram mensagens dizendo que estou sendo forte [depois que o caso foi exposto nas redes sociais entre os moradores da cidade], que também passaram por violência sexual e não levaram o processo adiante. Mas, até agora, ainda sinto aquele medo que senti antes de denunciar.”
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