Os debates sempre latentes sobre a redução da maioridade penal sugerem a diminuição para 16 anos, como se isso fosse diminuir a criminalidade no País, geralmente partindo da premissa de que o Estatuto da Criança e da Adolescência (ECA) está defasado e rejeitando o caráter pedagógico de suas medidas socioeducativas. Mas esta semana, em Marabá, ocorreu um episódio que quase passou despercebido, mas pode servir de aporte para um debate muito mais amplo do que a simplória redução da maioridade penal. Estamos falando do menino de 11 anos que foi apreendido junto com um acusado de tráfico de drogas, em meio a uma troca de tiros.
Diante disso, o Correio de Carajás procurou profissionais do Direito e das Ciências Sociais para obter opiniões embasadas a respeito de que tratamento deve ser dado aos jovens que se envolvem com a criminalidade. Será a redução da maioridade penal a panaceia para todos os males ou existe uma saída que pode estar diante dos nossos olhos e nos recusamos a enxergá-la?
PAUTADO NA CONSTITUIÇÃO
Allysson Castro, defensor público há 10 anos, observa que a Constituição Federal de 1988 adotou a doutrina da proteção integral da criança e do adolescente e, portanto, a partir da Carta Magna de 1988 diversos princípios protetivos passaram a nortear a construção do ordenamento jurídico infancista.
Ele afirma, diante do atual cenário jurídico e democrático, que é impossível que haja a redução da maioridade penal, por conta de alguns fundamentos jurídicos. Primeiro, o preceito normativo contido no artigo 228 da Carta Magna de 1988 dispõe que os menores de 18 anos são inimputáveis (não cometem crimes nem infrações penais), devendo se sujeitarem às normas da legislação especial, que no caso é o Estatuto da criança e do adolescente (lei 8069/90).
“Segundo, seguimos a corrente doutrinária que defende que o artigo 228 da CF/88 é uma cláusula pétrea (núcleo da Constituição que não pode ser modificado), e assim, qualquer proposta legislativa tendente a alterar essa garantia constitucional destinada aos menores de idade não poderá prosperar, pois o artigo 60, parágrafo 4°, inciso IV, da CF/88, impede que haja qualquer deliberação de proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais”, explica Allysson Castro.
“Por fim, seja com base da doutrina da proteção integral da criança e do adolescente, seja à luz do artigo 228 e artigo 60, parágrafo 4°, IV, da CF/88, defendemos a impossibilidade da redução da maioridade penal no Brasil”, resume.
ECA NÃO É BRANDO
Também ouvido pelo Correio, o advogado criminalista Lourival Cardoso observa que o tema tem ganhado a cada dia mais projeção, principalmente com o avanço da extrema direita no Brasil. Aliás, esse tema foi bandeira juntamente com a liberação do porte de armas para a população em muitos palanques. Ele pondera que esse discurso só é viável porque a população que já “não suporta” mais tanta violência e criminalidade, pois acredita que o enrijecimento da maioridade penal, que passaria de 18 para 16 anos seria a solução para a redução da criminalidade no País.
Mas o advogado apresenta dados do Anuário de Segurança Pública de 2017, que mostram que 6,7% dos jovens entre 15 e 17 anos foram vítimas de homicídio doloso. Sendo que 44,4% desses jovens cometeram ato infracional equiparado a roubo, 9,5% cometeu ato infracional equiparado a homicídio e 1,9% cometeu ato infracional equiparado a porte de arma de fogo. Para ele, os dados apresentados são mínimos se comparados a realidade populacional brasileira que já ultrapassa os 200 milhões de habitantes.
“Assim, o ECA não é legislação branda, como muitos acham, mas se amolda à verdadeira realidade do menor infrator, aplicando medidas socioeducativas aptas a reestabelecerem ao convívio em sociedade, sem, contudo, lhe impor pena, mas educando e ressocializando. Seguindo essa linha de raciocínio, são pífios os argumentos para a redução da maioridade penal, tendo em conta o aumento da criminalidade”, resume.
Lourival Cardoso entende, por fim, que reduzir a maioridade penal, além de importar num enorme retrocesso na defesa, promoção e garantia dos direitos humanos dos jovens brasileiros, é atestar a falência do Estado em cumprir e prover com seu papel de responsável por prover a segurança pública”.
OLHAR ALÉM
O cientista Marcelo Melo, professor do Instituto Federal do Pará (IFPA), tem críticas à própria noção de prisão no Brasil. Para ele, a concepção da sociedade moderna de que a prisão diminui a violência é um problema central que precisa ser enfrentado.
De acordo com ele, dados do Departamento Penitenciário Nacional indicam que a população carcerária no Brasil já chegou a 860 mil presos, em maio deste ano. Esse número era 232,7 mil no ano 2000. Ou seja, em duas décadas a população carcerária mais que triplicou.
Esse aumento se deve ao fato de que existe a ideia de que a prisão ajudaria a diminuir a violência, mas a violência vem aumentando ao passo em que aumenta também o número de presos. “Isso é um discurso falacioso, porque o sistema de ressocialização não funciona”, explica Marcelo, ao acrescentar que o sistema carcerário é deficiente e os presos saem pior do que entram.
O segundo problema que ele aponta é o viés social do sistema carcerário, que tem uma população carcerária formada por 67% de negros, onde mais da metade (53%) não tem sequer o Ensino Fundamental completo, 6% são analfabetos e apenas 1% tem nível superior completo. Ou seja, trata-se de um depósito de pessoas pobres e ignorantes do ponto de vista da educação formal.
Alia-se aí os tipos de crime que levam as pessoas para a cadeia, que são tráfico de drogas, roubo, homicídio, furto, receptação, posse e porte ilegal de arma, além de violência doméstica. Mas não aparecem nas estatísticas do sistema penal os crimes de improbidade administrativa, lavagem de dinheiro, evasão de divisa, desvio de recursos públicos. “As pessoas que cometem esse tipo de crime não entram sequer nas estatísticas”, reafirma.
Diante disso, Marcelo Melo esclarece que, para diminuir o índice de violência entre jovens, é preciso investir em saúde, cultura, educação e programas sociais que possam impedi-lo de chegar na situação de vulnerabilidade.
O menino de 11 anos apreendido com dois acusados de tráfico foi entregue aos cuidados da mãe. Segundo o delegado Bruno Mesquita, o menor não foi submetido a nenhuma medida socioeducativa prevista no ECA porque não cometeu nenhum ato infracional violento, como roubo ou homicídio, por exemplo. Mas este garoto voltou para a Vila Nova Canaã, a popular “Vila do Rato”, onde se depara com a mesma realidade. É preciso salientar que não apenas este menor precisa de uma atenção melhor do Estado, mas todo o bairro.
A entrada da Vila Nova Canaã fica no final da Avenida Getúlio Vargas, a segunda avenida mais movimentada da Marabá Pioneira. É a representação geográfica do paradoxo que é a sociedade marabaense, pois de um lado da Getúlio Vargas está o portal da orla, ponto de embarque de veranistas para a Praia do Tucunaré; cercado de bares e restaurantes onde a infraestrutura governamental está presente na sua forma mais aconchegante. Familiares se divertem em ambientes climatizados ou à beira do rio Tocantins assistindo a pores de sol deslumbrantes.
No outro lado está a única rua da vila do Rato, sem calçamento e iluminação pública precária; desprovida ainda de rede de esgoto e com as casas erguidas em palafitas. A localidade é cercada pelo Rio Itacaiúnas, é praticamente uma encosta, onde a presença do Estado se dá praticamente apenas por meio da polícia.
Está óbvio que já passou da hora da Vila Canaã receber obras de infraestrutura, iluminação pública, atendimento mais eficaz das equipes de Saúde da Família e quem sabe até uma pracinha. O bairro precisa ser visto com mais carinho pelas autoridades, pois adolescentes e as crianças que vivem ali estão em situação de vulnerabilidade, exposta ao tráfico que alimenta outros crimes. (Chagas Filho)
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